Quiroga Trail Challenge – Ultra Trail do Castelo

Eu deixo sempre o Diogo decidir as provas que ele quer fazer e eu acompanho. Não costumo fazer muitas perguntas, apenas de quantos km e desnível positivo. Nem costumo olhar para o perfil, para não me assustar. Mas uma prova com 66km e 3700d+ mete algum respeito. Nestes últimos fins de semana, como tem nevado bastante, fomos fazendo alguns percursos em montanha com os trilhos repletos de neve. E em boa hora o fizemos, pois as condições que encontramos em Quiroga foram bastantes duras, e se não tivéssemos a noção de como proceder em situações semelhantes, poderíamos incorrer em erros que poderiam colocar-nos em perigo acrescido.

Planeamos a viagem com antecedência, para isso contamos com a preciosa ajuda do nosso amigo Damián, que tratou das reservas do albergue e das refeições.

A viagem foi dividida com o Carlos e a Sílvia, saímos depois do almoço e fomos com calma até Quiroga, província de Lugo.

Chegamos a Quiroga e instalamo-nos no albergue, que seria também o quartel general de toda a logística da prova. De salientar toda a amabilidade e disponibilidade dos organizadores/voluntários da prova.

Após nos instalar no quarto do albergue e levantar o dorsal, fomos jantar e a seguir ouvir o briefing da prova.

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As condições climatéricas não eram as melhores, davam grande queda de neve durante a noite e no dia da prova, por isso ouvir o que a organização teria a dizer, era de extrema importância.

As notícias eram assustadoras, neve até 80cm, subida ao cume completamente exposta, 2km no cume sujeitos a ventos de 60km/h que aumentariam com o passar das horas, por isso chegar lá em cima o mais rápido possível era a melhor solução. Iríamos cruzar inúmeras vezes riachos, que devido às condições, seriam autênticos rios, com caudais interessantes, por isso pés secos seriam para esquecer.

O impermeável e pernas tapadas eram requisitos para participar na prova, com a altura da neve, a perna tapada impediria queimaduras e o impermeável iria manter a temperatura e evitar que os ventos a que iríamos estar sujeitos no cume provocassem situações de hipotermia. Com as condições climatéricas, não iriam conseguir colocar o abastecimento dos 30km, pois não havia possibilidade de nenhum veículo lá chegar, nem seria viável ter alguém no cume, parado, completamente exposto à neve e ventos que diminuíam em muitos graus a sensação térmica. Para além disso, nenhum helicóptero levantaria com aquele tempo, por isso a subida ao cume teria de ser bem ponderada e só subiria, caso as condições o permitissem, quem estivesse preparado.

Mas só iríamos descobrir se a subida ao Montouto se realizaria quando chegássemos ao km 20, pois o organizador iria sair de manhã para fazer a subida e verificar se seria exequível.

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Fomos dormir bastante receosos, mas com a certeza que iríamos passar mais uma aventura épica!
Acordamos às 6h, equipamos e fomos tomar um pequeno almoço reforçado. Reunimos com o resto da comitiva portuguesa que rumou a Espanha para conhecer os trilhos do Courel, tiramos a foto de praxe, desejamos boa sorte uns aos outros e esperamos pelo tiro de partida. O início foi um tanto ou quanto atribulado, pois logo ao início o Carlos deixou cair o impermeável, e sabendo da importância do mesmo, inverti o sentido da marcha e tentei recolher o mesmo, com toda a gente a vir ao meu encontro. Sabia que sem ele, o Carlos iria passar muito mal, por isso peguei no impermeável e corri o mais rápido que consegui para o tentar apanhar. Nesta azáfama, passei pelo Diogo que me diz que estou a ir muito rápido, eu sabia, mas tinha de apanhar o Carlos! Ele apercebeu-se e ajudou-me, ficando novamente o Carlos com o material obrigatório completo.

Fizemos uns 800m em alcatrão para entrar no trilho, como comecei muito rápido, fiquei logo com muito calor e tive vontade de tirar logo o impermeável. Com o início de uma subida, decidi caminhar enquanto o tirava e metia na mochila. Pouco depois entramos na montanha, estávamos com 3km de prova e estando apenas a 400m de altitude, começa a nevar.

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Era uma zona onde ainda estava tudo verde, mas os flocos de neve que caiam eram de tamanho considerável, e que me fez pensar de como estaria lá em cima. Foi uma parte de prova bastante rápida, com subidas e descidas pelo bosque, mas sempre ganhando altitude, e ficando cada vez mais branco, o que dificultava a orientação, pois as fitas de marcação eram brancas e vermelhas. Como era uma zona de single trak, seguia as pegadas da neve e nem olhava para as marcações, até que alguém diz que não vê fitas à algum tempo, pois era, havia uma seta marcada numa pedra, que tinha sido coberta por neve, voltamos atrás e iniciamos uma descida radical até ao início do rio, a partir daqui, acabariam os pés secos. O atravessar do rio seria uma constante em toda a prova. Fizemos alguns km ao longo deste riacho, ora de um lado da margem, ora do outro, a lama das margens, dificultavam a subida, o ziguezaguear junto ao leito não dava para grandes velocidades, e foi assim até chegar ao 1º abastecimento no km 10.

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Seguimos por um estradão a subir, coberto de neve, onde, em conversa com um espanhol, ele dizia que queria terminar de dia, mas que começava a ver a ‘coisa’ a ficar complicada. Eu seguia no meu ritmo, e no final da subida, iniciamos uma descida em single track, curta mas com desnivel acentuado, onde a lama, a neve e a rocha em xisto exigiam bastante prudência. Terminado a descida, regressamos ao rio. Aqui a progressão tornou-se ainda mais técnica que anteriormente. O terreno estava muito pesado, muita lama, pouca aderência que dificultava a subida das margens do rio, os pés e pernas constantemente molhados com água gelada que complicava ainda mais a acção dos músculos. Foi um troço de cerca de 2km, mas que nunca mais terminava. Quando finalmente deixamos para trás essa zona, seguimos a subir por um estradão florestal, onde a queda de neve se intensificava, e apesar do estradão ser bastante largo, seguíamos em fila indiana, pois a quantidade de neve era considerável (cerca de 50cm) e para poupar energia era mais fácil seguir pelo caminho já pisado. Continuamos a subir e verificamos que havia marcas de um jipe, que dali a pouco encontramos.

Nevava intensamente, a visibilidade começava a ser reduzida e no meio de tanto branco, havia alturas em que sentia dificuldade em ver por onde tinha de seguir… Começamos a descer e entramos numa zona escarpada que mais parecia uma crista de gelo. Aqui a neve não se tinha ainda acumulado e a rocha, em lousa, estava coberta de uma fina camada de gelo que tornava a progressão um verdadeiro desafio. Toda a cautela era pouca, uma queda aqui poderia ter consequências muito graves.

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Foram cerca de 15min para percorrer este pequeno troço de percurso a descer, que me deixaram muito apreensiva para aquilo que poderia encontrar se tivesse de subir até ao Montouto…

Saímos desta zona de escarpa e seguimos por um estradão onde duas voluntárias nos recebiam a apoiavam calorosamente. Informaram que o abastecimento estava a pouco mais de 1k. A descida continuava, agora num estreito single-track que ia ziguezagueando pela encosta. Aproveitei para acelerar um pouco, passei vários corredores, mas acima de tudo voltei a sentir-me mais confortável, estava a ficar com frio.

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Terminada a descida, chegamos a uma estrada rural que nos levou até ao 2º abastecimento em Outeiro. E é aqui que fico finalmente a saber que a prova iria continuar até Montouto, as condições era más, mas a organização tinha decidido não neutralizar esta parte do percurso.

Sabia que não havia abastecimento aos 30km, por isso tinha se abastecer para aguentar os 20km em autonomia. Bebi isotónico, como uma barra, meto outra ao bolso e meti pernas ao caminho. Tinha cerca de 7km a subir por um caminho que serpenteava uma zona de castanheiros e alguma vegetação, que nos protegia dos ventos frios. Era sempre a subir, mas cruzávamos algumas vezes o rio, que com o caudal que apresentava ficávamos molhados até ao joelho. Isto preocupava-me pois quando a vegetação acabasse, e começasse a zona exposta aos ventos, estando com as pernas completamente molhadas, poderia sentir muito frio. A organização avisou que esse seria o ponto no qual não haveria retorno, teríamos de seguir até o Montouto e descer.

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Quando a vegetação acabou, percebi o que de facto o Blas queria dizer com o ‘ponto de não retorno’. De facto o vento que se fazia sentir era terrível, mas voltar atrás significava encarar o vento de frente, havia pouca visibilidade e a neve que caia, que numa situação normal seria suave, aqui pareciam agulhas assassinas. Durante a subida fui-me preparando para este cenário. O buff que tinha na cabeça, passou para o pescoço, para proteger o nariz e a boca na zona exposta, e coloquei um gorro na cabeça. Como não tinha luvas impermeáveis, a solução que arranjamos, foi colocar umas luvas palhaço de plástico a impermeabilizar as que tinha vestidas. Só se via branco à nossa volta, a subida cada vez ia ficando mais inclinada, o trilho por onde os primeiros tinham passado cada vez era mais estreito, dado a nível de neve que encontrávamos.

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Íamos em fila indiana, mas eu estava a sentir que o ritmo não era bom para mim e tento ultrapassar pela neve fofa, arrependi-me logo, pois fico enterrada acima dos joelhos, e correr assim é impossível, então pedi para me deixarem passar e continuei a progressão. A subida neste momento passa quase a escalada e ficamos completamente expostos ao vento, entramos na cumeada da montanha e temos de progredir o mais rápido que conseguimos, mas o vento quase que nos empurra para trás ou nos faz cair. Os olhos mal abrem, tal é a quantidade de neve que se acumula nas pestanas. As pontas dos dedos já não se sentem, e aperto os bastões o mais forte que consigo para não os deixar cair. Sem dar por isso, estou no marco geodésico do Montouto (1541).

Nem queria acreditar que tinha conseguido chegar. Queria poder parar a contemplar o local, tirar uma foto para imortalizar o momento, mas não podia ser, ninguém podia parar. Naquele momento também pensei que nunca iria subir ao Everest, pois se aquela altitude, estava assim o tempo tão agreste, não queria imaginar o que seria aos 8000! A partir daqui seriam cerca de 2km na cumeada, com vento de frente, com ligeiras subidas e descidas, mas sempre no alto, sem protecção alguma, as marcações não se viam, seguíamos apenas o trilho já calcorreado pelos primeiros. O início da descida foi efectuada por um estradão largo, mas mais uma vez, cheio de neve, o que tornava o caminho num trilho de pé posto.

Comecei a correr o mais que conseguia para manter a temperatura, nesta altura estava acompanhada pela Marian, e seguimos juntas, pelos quilómetros de extensão desse estradão, sempre a perder altitude. Só deixei a Marian para trás quando deixamos esse estradão e descemos em linha recta por um corta fogo cuja inclinação superava os 45% seguramente. Aqui, para além da dificuldade da inclinação, seria a lama o outro obstáculo a transpor. A neve ficava para trás, e o caminho tornava-se mais fácil, seguíamos por um caminho rural, paralelo ao rio, que se encontrava uns 30m abaixo, apenas ouvíamos o som da água a correr no leito.

Abandonamos esse caminho para entrar numa área de bosque que descia sem grande trilho definido por entre as árvores, onde mais uma vez, a lama era o grande inimigo. Ia ultrapassando aqueles que tinham mais receio de atacar a descida. Ao sair do arvoredo, praticamente numa zona de relva, escorrego e faço uma entorse, por momentos pensei que tinha sido grave, mas levanto-me e consigo por o pé no chão sem dificuldade. Penso, menos mal, vamos lá continuar, mas dou 2 passos e o pé volta a ceder. Penso que a descida me tenha cansado um pouco, e os ligamentos com o estiramento a que foram sujeitos, precisavam descansar. Então decido ir mais devagar, para recuperar, até porque o abastecimento deveria estar perto. E não me enganei, poucos metros mais à frente encontrava-se um voluntário a indicar o caminho de retorno ao abastecimento dos 20km, que seria também o dos 40km.

Em termos de logística era mais fácil assim para a organização, mas aos atletas era pedido para fazer 500m até ao abastecimento, passar o controlo, e depois regressar aquele mesmo local onde se encontrava o voluntário. Sigo devagar até ao abastecimento para avaliar o pé, e pensar no que tinha acabado de conseguir fazer! Cheguei ao abastecimento e o organizador informa-me que o Nuno estava na frente da corrida. Fiquei contente, conversei um pouco, pedi para me abrirem uma barra, pois ainda não tinha grande acção nas mãos e segui caminho.

Na noite anterior, o Carlos, que iria fazer o trail, dizia que o percurso dele diferia do meu apenas na subida ao Montouto, e que a prova iria ter 2 picos aos 1200m. Isso fez-me pensar que ainda tinha de voltar aos 1200 e tinha de poupar energia. Esta parte do percurso era de uma beleza ímpar. Continuava a nevar devagar, mas como tínhamos descido bastante em altitude, o campo de visão tinha aumentado bastante e podíamos contemplar aquele vale fantástico, com o rio lá em baixo, o verde da vegetação das montanhas, e o branco da neve nos pontos altos.

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Aquele trilho era todo a meia encosta e eu só pesava quando começaria a subir a sério. Ora descia um pouco, ora subia e eu ia olhando para o desnível e já pouco faltava para o anunciado e nada da tal subida do Carlos. Os km iam passando, e o abastecimento dos 50 estava próximo, e então percebi que não iria subir mais até aos pontos críticos de neve. respirei de alívio.

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Passamos ao lado uma aldeia, pelo caminho rural onde os animais seguem para os pastos, com bastantes castanheiros nas bermas, muita lama e pedra para transpor. Cruzamos finalmente uma estrada secundária e no final da descida encontrava-se o abastecimento. Estava quase. Voltamos ao trilho junto ao rio, ora de um lado, ora do outro, por entre as árvores junto ao leito, pelo meio dos moinhos… Uma zona muito bonita, mas de progressão difícil. Após uma descida bastante íngreme, iniciamos a subida um pouco mais inclinada, onde inicialmente pensei que a conseguiria fazer sem a ajuda das cordas que lá estavam, mas devido à quantidade de lama, tornou impossível e lá tive de me agarrar as cordas. Após esse obstáculo surge um outro, o de ter de me agachar, para passar um túnel de 30cm de altura. Teve de ser de joelhos, ficando estes esfolados! A subida continuou, um pouco menos inclinada mas por um trilho lamacento, pois por esta altura tinha parado de nevar e começado a chover. Foram assim os quilómetros até ao abastecimento dos 58km. Aí já começava a ter fome a sério e decidi aceitar a água de sopa quente para dar algum conforto. Comi uma uma barra e pergunto quanto ainda falta. Dizem que faltam 8km e que de subida será apenas 1km. Fico contente e lá início a subida na companhia de um senhor que fui encontrando várias vezes ao longo do percurso. Conversamos um pouco até a subida se tornar bastante acentuada. Já estava a ficar bastante cansada e já não conseguia grande velocidade a subir, pelo que o senhor me foi ganhando distância. Aquele quilómetro era interminável, tornando-se em 2, e eu só pensava que era desnecessário! Já tinha 3500 de D+ e não parava de subir, e ainda para mais, bastante técnica! Finalmente cheguei ao topo e apercebo-me que ainda faltava mais uma traquinice dos organizadores. Durante o briefing, o Blas falava num carrossel ‘rompe piernas’ do final, e aqui estava ele. No cimo da montanha, por um estradão largo, ora a descer, ora a subir, já a vislumbrar Quiroga lá bem no fundo, mas nós continuávamos cá em cima, ora a subir, ora a descer. Só quando eles se cansaram de subir e descer é que apareceu a fita de corte no estradão a indicar que seria para descer, mas descer a pique. Mas antes disso, parei e contemplei o que tinha à minha frente, Quiroga lá ao fundo, com o rio Sil a serpenteá-la, estando protegida pelos gigantes da montanha, com a luz do final de dia a despedir-se. Lindo! Fechei os olhos para registar e iniciei a vertiginosa descida. Pouco depois estava a ultrapassar o companheiro do abastecimento, que não consegui acompanhar na subida. A partir daqui foi descer com as forças que tinha. No final da descida avistei um Castelo, deveria ser o que dava o nome ao Trail. O percurso torna-se mais ou menos plano, entramos na cidade e cada vez ouvimos mais de perto a voz do speaker. As pernas que já pouco queriam correr, ganham mais ânimo e até as subidas são feitas a correr. Ao chegar à meta, encontro outra vez o Diogo à minha espera! Não contava com ele ali. Ele foi mais prudente que eu e não arriscou a subida a Montouto. Mas eu tinha ido lá para O ver, e confiei em mim e no material que levava. Foi arriscado, mas felizmente tinha conseguido!!!

Tudo é possível, quando acreditas que é possível.

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